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Com toques de modernização, pratos típicos resistem ao tempo

Quem come cabeça de pacu, não sai mais de Cuiabá. Esse ditado popular, muito presente em músicas regionais e contos antigos, faz uma brincadeira com imigrantes e turistas e tornou-se referência à gastronomia cuiabana.

Cuiabana de pé rachado, a cozinheira Tereza Pereira, de 63 anos, acredita veemente nessa expressão. Trabalhando como voluntária na cozinha da Igreja de São Benedito há mais de 20 anos, Dona Tetê, como é conhecida, afirma que o peixe de Cuiabá tem fama no país inteiro.

“Essa história é verdade, as pessoas realmente gostam. Todo mundo que chega aqui, já pede um peixinho”, disse, com bom humor.

Apesar do crescimento da Capital - que neste dia 8 de abril comemora 300 anos - e a chegada de influências de outras regiões, Dona Tetê confia no potencial da culinária tradicional, que continua firme e forte, segundo ela.

“A comida tradicional cuiabana ainda é muito forte. Eu cozinho em vários lugares e sempre pedem. Geralmente, todo mundo gosta da nossa comida. Principalmente da Maria Izabel. Ficamos muito felizes, é um sentimento de realização”, explicou.

Modernização

Para o professor de gastronomia, João Carlos Caldeira, a culinária cuiabana evoluiu ao longo dos 300 anos e ganhou toques contemporâneos com novos chefes de cozinha.

“A gastronomia acompanha a evolução e o crescimento dos 300 anos de Cuiabá de forma tranquila, bem criativa e inovadora. Hoje nós temos grandes chefes de cozinha aqui”, afirmou.

Alguns chefes, como a renomada Ariani Maluf, fazem uma releitura de pratos tradicionais, que é o caso da mojica de pintado. Com influências francesas e árabes, ela utiliza um peixe nobre da cultura de Cuiabá e traz para o século XXI.

Ainda de acordo com Caldeira, apesar dos novos restaurantes que trabalham com culinária regional misturado com o contemporâneo, como o Seu Majó, Mahalo e Flor Negra, os tradicionais ainda fazem sucesso. Esse é o caso do Regionalíssimo, localizado na região do Porto.

Ele afirma que o tradicional não corre o risco de se perder, pois há uma nova leva de restaurantes e chefes de cozinha buscando dar continuidade às tradições.

“Não acredito que isso vai perder até porque tem um movimento hoje em que os chefes e restaurantes famosos do mundo inteiro, que estão mais fazendo sucesso, estão voltando ao regional, voltando para os ingredientes locais, aos pequenos produtores. Esse movimento já está acontecendo e vai acontecer também na próxima geração”, disse convicto.

Histórias temperadas

O professor explica que a gastronomia de Cuiabá surgiu da mistura de comida europeia com indígena.

“A gente teve influência, primeiramente, europeia usada pelos bandeirantes através dos portugueses, que foram os primeiros a pisarem aqui. Mas, basicamente, a nossa cultura culinária vem do índio, tanto que o ícone da nossa culinária é a mandioca, que é utilizada em muitas coisas”.

Com a mandioca, é possível ter uma infinidade de pratos. A mandioca vira farinha, farofa, doce, salgado, tapioca, é usada em diversos acompanhamentos e muitos outros.

Outro ingrediente essencial no prato regional é o peixe de água doce. Com a abundância do Rio Cuiabá, criou-se o costume de consumir muito peixe de diferentes modos. Com ele é feito o peixe com maxixe, a mojica, a moqueca, escabeche, além da clássica ventrecha de pacu. Até os dias atuais, o hábito de comer peixe ainda faz parte do gosto do cuiabano.

“Se você pegar o número de restaurantes, disparadamente a gente tem as peixarias. Em outros lugares do país, peixarias são lugares onde se vende peixe fresco. O único lugar em que peixaria é restaurante é aqui. É uma coisa muito nossa”, apontou João Carlos.

Contudo, o carro chefe da gastronomia da Capital é a Maria Izabel. Um prato preparado com arroz e carne seca, criado durante a Guerra do Paraguai, é muito apreciado nos restaurantes e nas casas.

“A Maria Isabel é um dos clássicos mais emblemáticos da nossa cultura. Na verdade ela é originária da guerra do Paraguai entre 1864 e 1870, mais ou menos. Os tropeiros que viajavam e participavam da guerra precisavam de alimentação, então nada mais prático do que a carne seca com o arroz”, contou o professor.

De acordo com João Carlos, a Maria Izabel tem forte influência do arroz carreteiro. Ele afirma que nada na gastronomia é exclusivamente de um único Estado ou região. As culturas se entrelaçam na cozinha.

Segundo Nilson Arruda, coordenador da cozinha da Igreja de São Benedito, uma das versões contadas sobre a origem do nome do prato é de que duas cozinheiras da igreja que batizaram a comida.

“Elas trabalhavam aqui. Uma se chamava Maria e a outra Izabel. Até então se chamava só carne com arroz. Ai elas resolveram juntar o nome das duas e isso aconteceu aqui na cozinha da igreja, muitos anos atrás”, contou.

Assim como a origem do famoso escaldado cuiabano, que possui várias versões. A mais famosa é a contada pelo Restaurante Choppão, conforme Caldeira.

“O restaurante está em uma praça estratégica, que é a 8 de Abril e tem 45 anos. Uma das versões é de que tinha um prostíbulo na região e eram servidos esses escaldados para fortalecer as meninas”, disse.

Técnicas e segredos

A paçoca de pilão também faz parte do cardápio da culinária cuiabana. Feita com farinha de mandioca e carne seca, Dona Tetê conta que o segredo é temperar com banha de porco. Os ingredientes são socados no pilão de madeira até ficarem moídos.

“Não é trabalhoso. Precisa de força, mas a tradição não pode morrer. Muita gente faz no liquidificador, mas não é assim. A nossa tradição é no braço, é força”, afirmou.

Para fazer a famosa cabeça de pacu, Tereza ensina que deve temperar o peixe, fritá-lo e depois servir no ensopado com mandioca.

Já o falado peixe com maxixe exige um pouco mais de habilidade. A cozinheira explica que é preciso secar o peixe com pimenta do reino. O peixe pode ser filé de pintado ou pacu, que são tradicionais do Rio Cuiabá.

“Seca ele com pimenta do reino, pelo menos nossa família faz assim, corta e leva no fogo. Dá uma suada, pega o maxixe e coloca um pouquinho de colorau”, disse.

Ainda segundo Dona Tetê, há um segredo para fazer a Maria Izabel. Ela revelou que sua técnica é colocar um pouco de açúcar para fritar a cebola.

“Tem que cortar a cebola em cubos. Ai você coloca o óleo, a cebola e vem a nossa massa caseira, que é com açúcar. Você coloca uma colher de açúcar para dourar a cebola. Depois coloca a carne seca na panela e vai pingando água para dourar até ela ficar macia e poder colocar o arroz”, explicou.

Para acompanhar a Maria Izabel, é feita a farofa de banana. O truque está em torrar bem a farinha de mandioca, além do sabor especial do bacon e da banana da terra.

Já o polêmico prato feito com cabeça de boi é mais trabalhoso. Apesar de nunca ter comido, a cozinheira afirma que é uma iguaria que faz sucesso e todos adoram. Ela revelou que é preciso colocar a cabeça dentro de uma lata, que é enterrada em um buraco no chão e fica cozinhando por algumas horas.

“Também faz um vinagrete apimentado para comer junto. Dizem que é muito bom. É muito tradicional, o povo gosta”, contou.

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